sexta-feira, 25 de setembro de 2020

A não recepção do artigo 102 da Loman pela constituição de 1988

Por: Prof. Fabiano Cotta de Mello


A matéria relativa à recepção ou revogação do art. 102 da LOMAN pela CF/88 e ao estabelecimento de critérios de eleição para os cargos de direção nos tribunais não é nova e gera polêmica, pois parte do STF sustenta tratar-se de temática de natureza institucional, constitucionalmente reservada à competência material do Estatuto de Magistratura.

A problemática se resolve através da delimitação do espaço normativo dos regimentos internos dos tribunais.

O Tribunal de Justiça de Mato Grosso (TJMT), utilizando seu poder nomogenético, em recentíssima decisão administrativa, alterou o § 11 do art. 47 do seu Regimento Interno para permitir a reeleição de desembargadores para seus cargos diretivos, não obstante a vedação expressa prevista no artigo 102 da LOMAN.

A competência dos tribunais de justiça para disporem regimentalmente sobre reeleição já foi por mim defendida em outro ensaio, sob o contundente argumento de que a eleição dos órgãos diretivos não é matéria sob a reserva de lei complementar prevista às hipóteses elencadas nos incisos do art. 93 da CF/88. Todavia, não se olvida que a matéria está longe de ter entendimento uniforme, mormente porque o STF, no julgamento da ADI 5.310/RJ, no ano de 2016, por maioria de votos, analisando especificamente a hipótese de nova eleição de desembargador para o mesmo cargo, desde que observado o intervalo de dois anos, declarou a inconstitucionalidade do art. 3º da Resolução nº 1, de 09.09.2014, do TJRJ, por violação ao art. 93, caput, da CF/88, segundo o qual está reservada à lei complementar (Estatuto da Magistratura), de iniciativa do STF a regulamentação da matéria afeta à elegibilidade para os órgãos diretivos dos tribunais.

O voto vencedor afirmou que as disposições da LC nº 35/1979 definem regime jurídico único para a magistratura brasileira e viabilizam tratamento uniforme, válido em todo território nacional, para as questões intrínsecas ao Poder Judiciário,

garantindo a necessária independência para a devida prestação jurisdicional, bem assim que essas normas complementares, não contrariando a CF/88, devem ser obrigatoriamente observadas pelos tribunais ao elaborarem seus regimentos internos e demais atos normativos.

Vale dizer, nesse julgamento, o STF assentou a primazia da LOMAN diante das normas regimentais. Como, aliás, fez durante décadas.

É vasta e farta a jurisprudência do STF no sentido de que a LOMAN foi recepcionada pela CF/88, e de que a aplicabilidade das normas e princípios do art. 93 da CF/88 independem de promulgação do Estatuto da Magistratura, bem assim que a autonomia regimental dos tribunais no que toca a eleição de seus dirigentes não é uma cláusula em branco autorizando criações de modelos flagrantemente incompatíveis com o sistema presidencialista constitucionalmente estabelecido.

O que se extrai do julgamento da ADI 5.310/RJ é que o Pretório Excelso, invocando o artigo 102 da LOMAN, pretendia dar um tratamento uniforme no que diz respeito à eleição dos órgãos diretivos de todos os tribunais do País e, para tanto, bloqueou o exercício de parcela a autonomia dessas cortes, embora a Constituição não autorize tal restrição.

Por recentes precedentes, em verdadeira mudança de entendimento, o STF declarou a não recepção do artigo 102 da LOMAN pela CF/88.

A LC nº 35/1979, em seu art. 102, prevê os requisitos de elegibilidade, o período do mandato, o procedimento de eleição dos cargos de direção dos tribunais e a vedação expressa à reeleição.

No Informativo STF nº 983, de 22 a 26 de junho de 2020, está noticiado que o Plenário, no julgamento conjunto da ADI 3.976/SP e MS 32.451/DF, declarou a não recepção, pela CF/88, do art. 102 da LOMAN (LC 35/1979), de modo que não subsista interpretação segundo a qual apenas os desembargadores mais antigos possam concorrer aos cargos diretivos dos tribunais, devendo a matéria, em razão da autonomia consagrada nos arts. 96, I, a, e 99 da CF, ser remetida à disciplina regimental de cada tribunal.

A não recepção do artigo 102 também foi confirmada pelo STF no julgamento da ADI 3.504/SP, virtualmente finalizado em 08.09.2020, em que se

analisava a constitucionalidade de artigo do Regimento Interno do TRT-15 que restringia o rol dos candidatos elegíveis. A conclusão do STF é que deve prevalecer, no campo da eleição dos dirigentes de tribunais, o estabelecido no regimento interno.

O relator, Ministro Marco Aurélio, consignou em seu voto que a CF/88, ao contrário da anterior, não incluiu no rol de princípios a serem observados na Lei Orgânica da Magistratura a disciplina da eleição, ficando a matéria no âmbito da autonomia administrativa dos tribunais. Por esse motivo, o artigo 102 da LOMAN não foi recepcionado pela atual Constituição, conforme entendimento firmado pelo Supremo no julgamento da ADI 3.976/SP, em junho deste ano.

Não obstante, há quem sustente que a declaração pelo STF de não recepção do artigo 102 da LOMAN pela CF/88 não autoriza os tribunais a tratarem por normas regimentais de reeleição ou da possibilidade de um mesmo desembargador ocupar cargos de direção por mais de quatro anos.

Essa, por assim dizer, “não recepção parcial” do artigo 102 da LOMAN, embora possível, parece destituída de juridicidade, uma vez que para certas situações se invocaria a autonomia dos tribunais — como para reconhecer que norma regimental do tribunal pode tratar do rol dos desembargadores que podem concorrer aos cargos diretivos — e, sem nenhum fator de discrímen, em outras situações, para manter a vedação da reeleição e a limitação do exercício de cargos diretivos a quatro anos, negar-se-ia o disposto nos arts. 96, I, a, e 99 da CF.

Saliente-se, ademais, a inexistência — no rol exaustivo do art. 93 da CF/88 — de reserva ao Estatuto da Magistratura da regulamentação da elegibilidade para os órgãos diretivos dos tribunais e tampouco sobre a competência privativa dos tribunais de eleger seus órgãos diretivos e elaborar seus regimentos internos, expressa no art. 96, I, “a”.

Assim, a interpretação sistemática da CF/88 leva à conclusão de que o autogoverno dos tribunais, previsto expressamente no art. 96, I, “a”, não pode ser mitigado pelo legislador infraconstitucional. Se a Constituição em vigor não condicionou a eleição dos cargos diretivos dos tribunais ao disposto na LOMAN — como fazia a EC nº 1/1969 —, não se pode invocar o art. 102 da LC nº 35/1979 para

concluir que apenas os juízes mais antigos, em número correspondente ao dos cargos de direção, são elegíveis ou que continua vedada a reeleição ou ainda que é proibido a um mesmo desembargador ocupar cargos de direção por mais de quatro anos.

Uma interpretação jurídico-constitucional do poder de autogoverno conferido pela CF/88 aos tribunais, estabelecendo competência privativa desses para eleger seus órgãos diretivos e elaborar seus regimentos internos, só pode conduzir à conclusão de que onde o constituinte não restringiu, descabe ao legislador infraconstitucional, e tanto menos ao intérprete, criar restrições ao autogoverno dos tribunais.

A Constituição de 1988 elenca disposições de observância uniforme e obrigatória para todos os tribunais.

Isso ocorre quando a LOMAN estiver a tratar de ingresso na magistratura, promoção, acesso aos tribunais, processo de vitaliciamento, formação e aperfeiçoamento de magistrados, subsídio, aposentadoria, residência obrigatória na comarca, penas disciplinares, remoção à pedido ou permuta, publicidade dos julgamentos e motivação das decisões, constituição de órgão especial nos tribunais, continuidade da atividade jurisdicional, proporção entre número de juízes na unidade jurisdicional, delegabilidade de atos a servidores e imediata distribuição de processos em todos os graus de jurisdição, pois tais princípios foram expressamente contemplados nos incisos do art. 93 da CF/88, a demonstrar a vontade da Constituição de que sejam tratados de forma uniforme para toda a magistratura nacional, bem como de que nenhum governo local possa neles se imiscuir, afrontando a independência do Poder Judiciário.

Nessas hipóteses faço coro com Gilmar Mendes e Lenio Streck sobre a necessidade de os membros da magistratura estarem vinculados a regras uniformes, sob pena de abertura de uma perigosa via de concessão de privilégios ilimitados.

Não significa, por outro lado, que toda e qualquer matéria que trate sobre a organização e funcionamento dos tribunais esteja sujeita à reserva de lei complementar.

No rol de princípios do art. 93 da CF/88 não há sequer menção à necessidade de uma regulamentação pelo Poder Legislativo nacional da eleição dos

órgãos diretivos dos tribunais do país. E afigura-se mais política do que jurídica a conclusão de que a disciplina da eleição dos cargos diretivos, a especificação do número de membros aptos a concorrerem aos cargos de direção, a fixação do período do mandato em dois anos e a vedação à reeleição são um bloqueio de competência aos tribunais, não obstante a própria Constituição tenha estabelecido como competência privativa dos tribunais “eleger seus órgãos diretivos”.

Uma interpretação menos política e mais federativa do art. 93 da CF/88 é incompatível com o antigo temor de que o disciplinamento das eleições nos tribunais através de normas regimentais coloque em cheque o caráter nacional da magistratura, diante da plausível possibilidade de que cada tribunal do país regule, de forma própria e independente, a criação e a organização dos seus órgãoS diretivos, o tempo de duração de mandatos, as condições de elegibilidade e o universo de elegíveis e de eleitores.

Diversamente do que ocorria sob a égide da Constituição de 1969, o disciplinamento da eleição para os cargos diretivos dos tribunais à LOMAN é algo que não se verifica na CF/88. A atual Constituição, além de assegurar ao Poder Judiciário a autonomia administrativa e financeira, assegurou a cada tribunal do país o autogoverno, ao afirmar que “compete privativamente aos tribunais eleger seus órgãos diretivos e elaborar seus regimentos internos” (CF/88, art. 96, I, “a”).

Quando a CF/88 reserva determinada matéria à lei complementar, há um bloqueio à competência regimental dos tribunais. Todavia, quando inexistir reserva de lei e tratar-se de matéria de auto-organização ou de autolegislação do tribunal, deve-se concretizar a Constituição e prestigiar a autonomia dos tribunais na regulamentação da escolha de seus cargos diretivos.

O que se está a afirmar é que os tribunais podem disciplinar a eleição de seus órgãos diretivos via regimento interno porque essa matéria não foi reservada pela CF/88 à lei complementar. Fora na vigência da Carta de 1969. Não mais a partir da vigência da Constituição de 1988.

De conseguinte, não tem arrimo constitucional a interpretação segundo a qual, não obstante reconhecida a não recepção do artigo 102 da LOMAN pelo STF, continua vedada a reeleição nos tribunais e proibido que um mesmo desembargador ocupe cargos de direção por mais de quatro anos.


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