Devo confessar que sou da época do refresco. Assim chamada uma bebida doce que se faz com um pó colorido. Quando eu era criança, toda casa tinha. Você chegava pra brincar na casa do coleguinha e já vinha a mãe com a jarra de plástico e a bebida metida a suco. Inúmeros eram os sabores: manga, laranja, goiaba, melancia, morango, abacaxi, caju, uva, limão e mais. Depois destes, as marcas começaram a inovar e misturar, tinha refresco de manga com maracujá, tangerina com mamão, laranja com acerola. Curioso era o fato de que os refrescos não tinham o gosto da fruta que estampavam na embalagem. O de limão era muito ácido, o de uva era muito doce, o de caju esquisito, o de laranja muito laranja…
Não raro alguém tomava um gole e logo perguntava: – Esse suco é de que? Essa pergunta era respondida rapidamente, quando a pessoa que misturou o pozinho na água estava presente. Aquela pessoa que viu a foto da fruta na embalagem do refresco e ficou sugestionada a sentir seu gosto enquanto bebia. Quando não, aquilo gerava uma discussão de dar inveja a qualquer turma de Direito na aula de Bioética. A conclusão mais acertada era terminar dizendo que era suco de amarelo, ou de vermelho, dependendo da cor que o corante artificial lhe havia dado. Nunca me atrevi a ler a lista de ingredientes no verso do pacotinho. A ignorância às vezes é mais benéfica.
Já o “PROCON” alemão não tomou a mesma sábia decisão de não saber de que era feito um chá que levava o nome de “Aventura da framboesa e da baunilha. ” Na embalagem, fotos de framboesas frescas e flores de baunilha abriam o apetite. Além disso, o chá enganador se gabava de conter apenas aromas naturais. Certamente algum consumidor, ao tomar o chá, não conseguiu distinguir o sabor nem da framboesa, nem da baunilha e foi procurar por elas no rótulo. Qual não foi sua surpresa ao verificar que o chá não era de framboesa e baunilha, mas era chá de vermelho… Na verdade, o chá não continha pedaços ou sequer aromas naturais de baunilha ou framboesa.
O órgão de defesa do consumidor, inconformado com o chá de vermelho, ajuizou uma ação contra uma gigante do mercado de chás, a Teekanne. Em primeira instância, ganhou o “PROCON”, sustentando que a embalagem e informações do chá enganavam o consumidor. Mas a Teekanne apelou e conseguiu convencer o tribunal de que as descrições do chá eram suficientemente claras. Os desembargadores entenderam que a informação de que o chá continha “aromas naturais com gosto de baunilha e framboesa” era suficiente para que o consumidor entendesse que no chá não havia nem sombra daqueles ingredientes. Quando li isso, fiquei impressionada com a alta conta em que o Tribunal de Düsseldorf tem o consumidor. O Tribunal não só acha que o consumidor lê todas as descrições em vez de se ater às fotos ostensivas na embalagem, como acha que ele vai concluir que o gostinho de baunilha não vem da baunilha. Talvez o consumidor médio de Düsseldorf seja um nutricionista, PhD em fusão de aromas naturais de ervas e frutas que se assemelham ao aroma de outras ervas e frutas.
Para o bem da nação e do direito do consumidor, parece que o consumidor médio do resto da Alemanha não preenche os estritos requisitos acima, razão pela qual o Superior Tribunal de Justiça Alemão, o Bundesgerichtshof – BGH, resolveu analisar melhor o caso. Surpreendentemente, saber se aquela embalagem engana realmente o consumidor foi desafiador demais para a corte. Com a pulga atrás da orelha resolveram consultar a Corte de Justiça Europeia. Enviaram para lá a seguinte pergunta:
O rótulo, apresentação e publicidade de um produto podem dar a impressão da presença de determinado ingrediente, mesmo que o ingrediente esteja ausente e que só seja possível saber disso lendo a lista de ingredientes?
A Corte Europeia, depois de densa análise das Diretrizes e Regulamentos europeus sobre alimentos, respondeu: Não! De posse do parecer europeu, o STJ alemão finalmente decidiu que o chá realmente enganava os consumidores, ostentando nome e fotos de ingredientes que não continha. Ufa!
Não sei se os pais dos donos da Teekanne disseram para eles que mentira tem pernas curtas, mas se disseram, este caso acaba de contradizê-los. O chá mentiroso foi longe! Que árduo caminho este do chá de vermelho. Foi preciso juiz, desembargadores, ministros do STJ e da Corte Europeia de Justiça para dizer que não se admite o chá de vermelho. Quer dizer, na verdade, admite-se o chá de vermelho, desde que ele não tente se passar por chá de framboesa com baunilha. A conclusão deste “causo” vale pra muitos sujeitos: o problema não é ser chá de vermelho, o problema é não ser honesto.
Deborah Alcici Salomão é Advogada | Doutora pela Justus-Liebig-Universität Giessen e Mestre pela Phillips Universität Marburg | Host dos podcasts Última Instância e As Advogadas.
Tomar um chá de engano publicado primeiro em: https://blog.juriscorrespondente.com.br
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